Limiares
Há certa contingência na ação de se fabricar objetos: a potencialidade de serem utilitários ou não. Mesmo quando intencionalmente úteis, podem a qualquer tempo tornar-se outra coisa que transcenda a ordem do uso (mais especificamente, de um uso) e tornarem-se peças cúmplices do imaginário, da fé, da memória, da arte, entre outras probabilidades tão numerosas quanto são as relações que os objetos despertam nos seres que os criam e nos que deles desfrutam. Talvez não seja descabido pensar que à dimensão do tempo está guardado testemunhar - quando não a desaparição - todo o tipo de abstração no sentido original dos objetos.
Objetos que já nascem um pouco inclassificáveis, dão esse salto mais rapidamente, ou isso pretendem. Jamais obsoletos, pois jamais acostumados com1, esses objetos fenomenológicos são oferecidos aos sentidos em função da posição que ocupam no espaço, das textura que apresentam, de suas monocromias simbolicamente relacionáveis umas às outras, dos pesos literais e de sentido que lhes inferimos. Em um lugar de aposta constante vivem essas peças, e parece importante lembrar disso mesmo quando elas estejam conosco, tal qual um coiote, entre as quatro paredes da arte.
Os trabalhos de Camilla D’Anunziata costumam ser esses objetos inclassificáveis, mesmo quando seus nomes fornecem pistas de suas possibilidades. Chaves, portais, bandeiras são, em uma compreensão ligeira, objetos que supõem o uso: abrir algo através de um segredo, ser a entrada (ou a saída) para algum lugar, afirmar uma ideia através de um signo. Mas, “o puramente expressivo não é uma reprodução da vida. É seu oposto”, escreveu Mondrian em 19232, e se concordarmos um pouco com ele, poderemos ensaiar uma compreensão das motivações dessa artista que se atravessa de misticismos jamais excludentes em busca de acessos a si mesma, para então oferecê-los ao mundo como se fossem objetos de uso prático - o design e a utopia da estetização da vida, afinal.
D’Anunziata, que parte do desenho sempre, no desenho também chega, construindo certa geometria e simetria de base intuitivas que, a partir de um imaginário individual, miram no universal pela via do enigma experimentável por todos. Um limiar é um quase, um potencial de acesso, sinaliza uma borda. Parece um convite.
Charlene Cabral - Curadora
1 Do latim obsoletus , em que ob a parece como “oposto” e soletus como “estar acostumado com”. 2 Mondrian, Piet. Neoplasticismo na pintura e na arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
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There is a certain contingency in the action of making objects: the potentiality of being utilitarian or not. Even when intentionally useful, they can at any time become something else that transcends the order of use (more specifically, of oneuse) and become complicit parts of the faith, memory, art, among other probabilities as numerous as relationships that objects arouse in beings who create them and those who enjoy them. It may not be unreasonable to think that to the dimension of time is kept witnessing - when not
disappearance - all kinds of abstraction in the original sense of objects.
Objects that are born a little unclassifiable make this leap faster or so they intend to. Never obsolete, as they are never accustomed to¹, these phenomenological objects are offered to the senses in terms of their position in space, their texture, their symbolically related monochromes, their literal weights and meaning. In a place of constant bet these pieces live, and it seems important to remember this even when they are with us, like a coyote, between the four walls of art.
Camilla D'Anunziata's works are often such unclassifiable objects, even when their names provide clues to their possibilities. Keys, portals, flags are, in a slight understanding, objects that suppose use: opening something through a secret, being the entrance (or exit) to somewhere, affirming an idea through a sign. But “the purely expressive is not a reproduction of life. It is its opposite”, Mondrian wrote in 1923², and if we agree a little with him, we can rehearse an understanding of this artist's motives that crosses ever-excluding mysticisms in search of access to herself, and then offer them to the world as if they were objects of practical use - the design and the utopia of the aestheticization of life, after all.
D'Anunziata, who always starts from drawing, also arrives at drawing, building a certain intuitive geometry and basic symmetry that, from an individual imagination, aim at the universal through the enigma that everyone can experience. A threshold is an almost, an access potential, signals an edge. It looks like an invitation.
Charlene Cabral
Curator
¹ From Latin obsoletus, where ob appears as “opposite” and soletus as “being accustomed to”.
² Mondrian, Piet. Neoplasticism in painting and architecture. São Paulo: Cosac Naify, 2008.